[Artigo de opinião publicado hoje no Diário de Aveiro]
A nova Ponte sobre o Canal Central – Um projecto para demolir
Alberto Souto de Miranda
1- O Canal Central: a memória urbana central
A construção de uma nova ponte sobre o Canal Central tem vindo a suscitar um interessante debate cívico e a concitar críticas várias. Não é para menos: efectuar uma intervenção com o grau de agressividade imagética que esta tem, no coração da nossa memória identitária, é um acto de enorme responsabilidade, que aconselhava toda a prudência, exegese arquitectónica muito criteriosa, uma justificação muito sólida e uma inspiração muito feliz. Infelizmente parece que nada disso aconteceu e Aveiro está prestes a profanar, chocantemente, o seu espaço público mais querido. Não se sabe em nome de quê (Parque da Sustentabilidade ???), não se sabe para quê (um alegado movimento de comerciantes do Alboi ???), mas sabe-se que é uma violação urbana contra a harmonia que o passado nos legou. Há obras de ruptura que criam futuro. Mas também há obras que apenas o tornam mais feio e absurdo. Ainda estamos a tempo de evitar cometer um erro de lesa património.
2- Legitimação formal e mandato para destruir o Canal Central
Este executivo tem toda a legitimidade formal para construir várias coisas. Mas o povo não lhe deu legitimidade para destruir o Canal Central. Ninguém sufragou isso. E recomendaria o bom senso e o sentido de responsabilidade, que este processo tivesse sido amplamente participado por todas as pessoas interessadas, pelas mais qualificadas, pelas entidades com massa crítica para poderem ajudar, enfim, já não é pedir muito, que a própria oposição tivesse tido oportunidade de acompanhar o processo desde o seu início, de reflectir amadurecidamente sobre ele e não apenas o de o votar numa única sessão…É uma temeridade adjudicar uma ponte destas, neste local, sem submeter as propostas e a própria decisão de a construir ali, a fóruns mais alargados e com outra capacidade de avaliação, do que aquela que demonstrada pelo reduto circunscrito da decisão camarária. Preferiu-se, mal, o segredo dos gabinetes e dispensou-se, muito mal, o conselho de pessoas avalizadas. Muitas vezes tive que deixar na gaveta algumas ideias minhas, porque não passaram no crivo de pessoas mais avisadas do que eu. E nem o facto de se ter realizado concurso público desculpabiliza e obriga: algumas vezes tomei a decisão de não adjudicar, quando a qualidade das propostas não era aquela que a sensibilidade dos locais exigia. Nem a tecnocracia tem sempre razão, nem os políticos a devem dispensar. Mas, às vezes, decidir não fazer, pode ser a decisão mais sábia.
3- A localização e o planeamento. A importância das pontes.
Uma cidade que tem o privilégio de ter canais, tem a obrigação de saber construir pontes de qualidade. Não está em causa a necessidade de mais uma ponte ligando o Rossio e Beira-Mar à zona da Universidade. Ligar mais a Glória à Vera Cruz é reforçar dinâmicas de vivência do espaço público que só valorizam a comunidade. Nos oito anos em que estive na Câmara construíram-se, lançaram-se ou planearam-se várias novas pontes (cinco entre a Capitania e o Lago da Fonte Nova, três no Canal de S. Roque, uma sobre a eclusa do Canal das Pirâmides). Mas, quando pensámos no Canal Central não ousámos estragar: estudámos, estudámos, estudámos e optámos por localizá-la no Canal das Pirâmides. Essa localização está aprovada pelo Plano Pólis e
4- O projecto escolhido
Só um arquitecto muito inspirado poderia ter conseguido o prodígio de uma nova ponte sobre o Canal Central sem o estragar. O projecto vencedor é uma derrota para a cidade. Não sei se não merecia ganhar, mas este é um ganho que Aveiro dispensa. O projecto, em sim mesmo, tem uma parte boa – o atravessamento - e duas partes más – as rampas de acesso; mas, como não há projectos meio bons, o conjunto é todo mau. O resultado é uma espécie de colete de forças, uma ferradura de betão que querem calçar a Aveiro, salvo seja, “rectius” , uma verdadeira “chave inglesa” a torcionar as duas margens…Esta ponte não tem de ter mais do que a altura das velhas pontes (não é a altura das lanchas turísticas que deve condicionar a altura da ponte, mas sim a altura das pontes a condicionar a altura dos barcos: v.g. os “bateau mouche” de Paris, Estraburgo, Amesterdão, etc.) e esta ponte não tem de ter aquelas horrorosas rampas para acesso a pessoas com mobilidade reduzida. A ponte não deve ser construída, mas se, contra todo o bom senso se obstinarem na sua construção, cortem pelo menos as duas rampas: a ponte ganharia em leveza e perderia boa parte do seu impacto negativo. Há outras soluções para as pessoas com mobilidade reduzida…
5 – Construir o futuro sem construir a ponte
Estamos a tempo de evitar um atentado contra a nossa sala de visitas, contra o núcleo mais irredutível da nossa identificação urbana, contra a sustentabilidade do património que apregoamos querer defender. Estamos a tempo. Era mais difícil mudar um aeroporto. Não sou daqueles fundamentalistas que, em nome de defesa do património, impedem, com os seus excessos e pruridos, qualquer intervenção no “staus quo”. Por vezes as cidades e a natureza apodrecem em nome dessas cartilhas. E sou dos que acreditam que é preciso criar edificado de qualidade para deixar património para o futuro. Mesmo provocando algumas rupturas. Mas construir o futuro pode passar por se ter a humildade de não construir obras tão duvidosas, em locais tão sensíveis. Este atentado é gratuito e é muito caro: não há nenhuma urgência que o justifique e vamos pagar um preço muito elevado pelo desfear da cidade. Somos todos responsáveis se este crime se perpetrar. Pela minha parte não o cauciono. E ainda tenho esperança que o Sr. Presidente da Câmara, alertado por tantas vozes mais descomprometidas do que a minha, saiba parar para reflectir e possa mandar parar o projecto. Aveiro ficar-lhe-ia muito grato. O património que herdámos (o nosso canal central) é uma ponte para o futuro. Em nome desse futuro, este novo projecto deve ser demolido.
Aveiro, 20 de Fevereiro de 2010
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