Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 2010

[Artigo de opinião publicado hoje no Diário de Aveiro]


A nova Ponte sobre o Canal Central – Um projecto para demolir

Alberto Souto de Miranda

  

1- O Canal Central: a memória urbana central

A construção de uma nova ponte sobre o Canal Central tem vindo a suscitar um interessante debate cívico e a concitar críticas várias. Não é para menos: efectuar uma intervenção com o grau de agressividade imagética que esta tem, no coração da nossa memória identitária, é um acto de enorme responsabilidade, que aconselhava toda a prudência, exegese arquitectónica muito criteriosa, uma justificação muito sólida e uma inspiração muito feliz. Infelizmente parece que nada disso aconteceu e Aveiro está prestes a profanar, chocantemente, o seu espaço público mais querido. Não se sabe em nome de quê (Parque da Sustentabilidade ???), não se sabe para quê (um alegado movimento de comerciantes do Alboi ???), mas sabe-se que é uma violação urbana contra a harmonia que o passado nos legou. Há obras de ruptura que criam futuro. Mas também há obras que apenas o tornam mais feio e absurdo. Ainda estamos a tempo de evitar cometer um erro de lesa património.

2- Legitimação formal e mandato para destruir o Canal Central

Este executivo tem toda a legitimidade formal para construir várias coisas. Mas o povo não lhe deu legitimidade para destruir o Canal Central. Ninguém sufragou isso. E recomendaria o bom senso e o sentido de responsabilidade, que este processo tivesse sido amplamente participado por todas as pessoas interessadas, pelas mais qualificadas, pelas entidades com massa crítica para poderem ajudar, enfim, já não é pedir muito, que a própria oposição tivesse tido oportunidade de acompanhar o processo desde o seu início, de reflectir amadurecidamente sobre ele e não apenas o de o votar numa única sessão…É uma temeridade adjudicar uma ponte destas, neste local, sem submeter as propostas e a própria decisão de a construir ali, a fóruns mais alargados e com outra capacidade de avaliação, do que aquela que demonstrada pelo reduto circunscrito da decisão camarária. Preferiu-se, mal, o segredo dos gabinetes e dispensou-se, muito mal, o conselho de pessoas avalizadas. Muitas vezes tive que deixar na gaveta algumas ideias minhas,  porque não passaram no crivo de pessoas mais avisadas do que eu. E nem o facto de se ter realizado concurso público desculpabiliza e obriga: algumas vezes tomei a decisão de não adjudicar, quando a qualidade das propostas não era aquela que a sensibilidade dos locais exigia. Nem a tecnocracia tem sempre razão, nem os políticos a devem dispensar. Mas, às vezes, decidir não fazer, pode ser a decisão mais sábia.   

3- A localização e o planeamento. A importância das pontes.

Uma cidade que tem o privilégio de ter canais, tem a obrigação de saber construir pontes de qualidade. Não está em causa a necessidade de mais uma ponte ligando o Rossio e Beira-Mar à zona da Universidade. Ligar mais a Glória à Vera Cruz é reforçar dinâmicas de vivência do espaço público que só valorizam a comunidade. Nos oito anos em que estive na Câmara construíram-se, lançaram-se ou planearam-se várias novas pontes (cinco entre a Capitania e o Lago da Fonte Nova, três no Canal de S. Roque, uma sobre a eclusa do Canal das Pirâmides). Mas, quando pensámos no Canal Central não ousámos estragar: estudámos, estudámos, estudámos e optámos por  localizá-la no Canal das Pirâmides. Essa localização está aprovada pelo Plano Pólis e em vigor.  A ponte que agora se quer construir sobre o Canal Central vai ao arrepio dos intrumentos de planeamento aprovados. Não digo que seja ilegal. Mas estando em vigor uma opção de localização que responde às mesmas necessidades, esta nova ponte é dispensável, é incoerente e é uma excrescência de planeamento, além de um crime urbanístico. À escala do Canal Central, ela representa o mesmo tipo de crime que o viaduto sobre o IP-5 significou, então, sobre o Canal das Pirâmides; mas mais grave, porque é uma punhalada no coração da cidade.      

4- O projecto escolhido

Só um arquitecto muito inspirado poderia ter conseguido o prodígio de uma nova ponte sobre o Canal Central sem o estragar. O projecto vencedor é uma derrota para a cidade. Não sei se  não merecia ganhar, mas este é um ganho que Aveiro dispensa. O projecto, em sim mesmo, tem uma parte boa – o atravessamento - e duas partes más – as rampas de acesso; mas, como não há projectos meio bons, o conjunto é todo mau. O resultado é uma espécie de colete de forças, uma ferradura de betão que querem calçar a Aveiro, salvo seja, “rectius” , uma verdadeira “chave inglesa” a torcionar as duas margens…Esta ponte não tem de ter mais do que a altura das velhas pontes (não é a altura das lanchas turísticas que deve condicionar a altura da ponte, mas sim a altura das pontes a condicionar a altura dos barcos: v.g. os “bateau mouche” de Paris, Estraburgo, Amesterdão, etc.) e esta ponte não tem de ter aquelas horrorosas  rampas para acesso a pessoas com mobilidade reduzida. A ponte não deve ser construída, mas se, contra todo o bom senso se obstinarem na sua construção, cortem pelo menos as duas rampas: a ponte ganharia em leveza e perderia boa parte do seu impacto negativo. Há outras soluções para as pessoas com mobilidade reduzida…

5 – Construir o futuro sem construir a ponte

Estamos a tempo de evitar um atentado contra a nossa sala de visitas, contra o núcleo mais irredutível da nossa identificação urbana, contra a sustentabilidade do património que apregoamos querer defender. Estamos a tempo. Era mais difícil mudar um aeroporto. Não sou daqueles fundamentalistas que, em nome de defesa do património, impedem, com os seus excessos e pruridos, qualquer intervenção no “staus quo”. Por vezes as cidades e a natureza apodrecem em nome dessas cartilhas. E sou dos que acreditam que é preciso criar edificado de qualidade para deixar património para o futuro. Mesmo provocando algumas rupturas. Mas construir o futuro pode passar por se ter a humildade de não construir obras tão duvidosas, em locais tão sensíveis. Este atentado é gratuito e é muito caro: não há nenhuma urgência que o justifique e vamos pagar um preço muito elevado pelo desfear da cidade. Somos todos responsáveis se este crime se perpetrar. Pela minha parte não o cauciono. E ainda tenho esperança que o Sr. Presidente da Câmara, alertado por tantas vozes mais descomprometidas do que a minha, saiba parar para reflectir e possa mandar parar o projecto. Aveiro ficar-lhe-ia muito grato. O património que herdámos  (o nosso canal central) é uma ponte para o futuro.  Em nome desse futuro, este novo projecto deve ser demolido.     

Aveiro, 20 de Fevereiro de 2010


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publicado por amigosdavenida às 08:57 | link do post | comentar | favorito

3 comentários:
De a 24 de Fevereiro de 2010 às 09:46
Não dá para ler das imagens...


De João Amaral a 25 de Fevereiro de 2010 às 03:50
Foi este o homem que pensou, pensou e decidiu construir o túnel automóvel sob a via férrea que compromete para sempre a possibilidade da Avenida se tornar mais amiga dos peões? Nunca se nota este decoro de virgem ofendida quando se trata de infra-estruturas para os popós!


De Cátia Correia a 7 de Maio de 2010 às 17:12
"...esta ponte não tem de ter aquelas horrorosas rampas de acesso a pessoas com mobilidade reduzida."
É desta forma que, no artigo de opinião publicado pelo Diário de Aveiro no dia 24 de Fevereiro (ver imagens acima), um certo senhor se refere a como, na sua opinião, caso a construção se verifique nos actuais moldes, deveria ser a nova ponte sobre o Canal Central da Ria de Aveiro.
Senhor este que durante 8 anos presidiu ao executivo da Câmara Municipal de Aveiro e foi o defensor dos interesses de todos os Aveirenses, onde se englobam (supostamente) os de mobilidade reduzida (certo?).
Acrescenta ainda que "Há outras soluções para as pessoas com mobilidade reduzida" e "...se obstinarem na sua construção, cortem pelo menos as duas rampas" pois, assim (citando) "a ponte ganharia em leveza e perderia boa parte do seu impacto negativo".
Não ponho em causa a sua opinião contra a construção da referida ponte, pois, nesse tema, cada um é livre de ter a sua opinião e a minha não a vou sequer aqui referir pois o objectivo desta minha intervenção não é de todo a polémica em redor do assunto. O que não gostaria que passasse em branco são as palavras deste senhor que, em prol da estética, das aparências e da futilidade, publicamente afirma que há-de haver outras soluções para quem use cadeira de rodas (ou até mesmo carrinhos de bebé), entre elas se calhar deslocarem-se até à rotunda das Pontes e fazer novamente o trajecto em sentido contrário. Mas será que não era isto que já fazíamos? Não terá sido esta uma das razões por que se pensou em construir a ponte?
Apetece-me perguntar a este senhor se sabe o significado de "obras públicas" e de "dinheiros públicos". Se se vai gastar o dinheiro que é de todos, então TODOS teremos que ter igual acesso à obra feita. Embora que este senhor prefira que a ponte não se construa, custa-me ouvir que essa construção já seria mais aceitável se fosse só para transiuntes sem mobilidade reduzida, pois assim ficaria mais agradável à vista dos turistas. E os Aveirenses? ...


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