Quinta-feira, 28 de Outubro de 2010
[artigo de opinião, João Cardielos, arq.º]

Largo do Alboi AVEIRO - "I would prefer not to"

As paisagens são um dos mais poderosos produtos de representação, e são também um dos mais inequívocos reflexos da construção da identidade de qualquer sociedade. De entre todas elas, as paisagens urbanas são aquelas que, incontornavelmente, têm vindo a revelar de modo mais expressivo os avanços e as transformações que o alavancar dos desenvolvimentos modernos e contemporâneos permitiu, nos campos da economia, do desenvolvimento social e da cultura. O cruzamento intencional do conhecimento desses processos de construção continuada, com a voragem de uma mutação permanente e imparável, sublinhou um crescente apego colectivo à, tantas vezes pertinente, figura da classificação patrimonial. Amplamente difundida como instrumento de gestão territorial e, mais recentemente, como instrumento particular de gestão das paisagens, naturais e ou urbanas, ela tem vindo a transformar-se progressivamente num reduto de cristalização de memórias nostálgicas. A identidade nacional paga um preço elevado pela enfatização histórica dessas mesmas memórias, reais ou forjadas, que como instrumentos políticos foram sendo usadas ao longo dos últimos séculos, para perpetuar um sentido de carácter nacional que hoje, com clareza evidente, em grande medida nos abandonou. Só excepcionalmente a excelência nacional aflorou a superfície de um modelo de crescimento que se manteve refém das políticas decorrentes de escalas macro, que nos enquadram, e das quais necessitamos num mercado de rede alargado em que cada vez mais faz sentido participar. O preço desta convergência supra-nacional não tem porém paralelo, quando se interpelam as contribuições inovadoras e o sentido de liderança, que esta sociedade cada vez mais global nos exige como padrão caracterizador de identidade. A nostalgia preenche aqui um lugar indevido e usurpa o espaço da mudança.

Contudo a sua pertinência pode justificar-se, se a inconsistência dos resultados mais recentes persiste, convertendo a nostalgia numa faca de dois gumes, quando se acompanham os desenvolvimentos e o sentido próprio das transformações, que vão fixando registos de uma suficiência escassa, ou mesmo de uma mediocridade crescente, que os ciclos determinativos curtos, dos poderes democráticos, naturalmente impuseram, a uma sociedade pouco estruturada culturalmente, que as lideranças políticas, pouco esclarecidas, convertem tão simplesmente em lideranças governativas.

Resumindo, apetece ao colectivo abstracto e impessoal manter, nostalgicamente, o contexto físico pré-existente, para impedir uma delapidação maior que uma transformação natural, possivelmente desqualificada e imprudente, pudesse impulsionar para um estádio de desmotivação e de alheamento colectivo que, tantas e tantas vezes, esta sociedade portuguesa tem vindo recentemente a experimentar. Avisado, este brando costume nacional, protege da desgraça. mas também condena as possibilidades de futuro. Saudade, como disse o poeta, só do futuro!

Mas como lidar hoje com um futuro sequestrado em ciclos de quatro anos, ou pouco mais, que são tão incompatíveis com os outros ciclos, das paisagens do espaço urbano ou do contexto natural, que elas reclamam culturalmente por direito próprio, assente aqui na experiência milenar (mesmo em Aveiro, que recentemente viu cumprir o deu 1050º aniversário?). Como invocar a necessidade de um propósito e de um futuro consensual - de médio ou longo prazo, para um produto que não conhece outros ciclos - quando a vertigem da governância política actual impele a decisão para a sistemática imprudência?

Não é de arquitectura, ou de ordenamento do território, que se faz este debate. Trata-se de esgrimir causas, consensos e futuros, como sempre acontece em paisagens que reflectem como produtos fiéis, as convicções dos seus agentes mais activos e determinados, na perseguição das causas que os estimulam. Se a história nos ensinou o valor da qualidade das lideranças, também nos pode proporcionar hoje a segurança dos bens patrimoniais duráveis já alcançados. A esses, importa e muito preservar, se o futuro reserva mais surpresas do que certezas, ou se uma sociedade mais atenta e crítica não foi ainda capaz de consensualizar objectivos, que possam alimentar uma liderança verdadeiramente democrática!

Será esta a outra "estória" possível de um debate sobre um largo matricial urbano, consistente e acarinhado pelos seus moradores, e pelos mais prudentes cidadãos, no Alboi aveirense. A história particular e rica deste lugar urbano de excelência só poderá bater-se com a hipótese de um futuro renovado, se essa nova página se der a conhecer e puder construir consensos e paixões, suficientemente fortes para acolherem a aclamação daqueles que, agora, se debatem pela persistência das qualidades inequívocas que reconhecem e arriscam perder. Avisados, como sempre, no brando costume de quem usa a história como lição, e esta história recente, da governância local, não é muito inspiradora.

De uma rua que rasga sem propósito, traçando a direito uma cicatriz, pelo jardim nostálgico e central de uma "square" frouxa, mas rara, que poderíamos explorar como matricial em contexto nacional, se o quiséssemos e soubéssemos fazer, não rezará a certamente a história. A menos que os recentes movimentos de cidadãos de Aveiro estejam a escrever, aqui e agora, uma nova e duradoura história, como eu creio que estará a acontecer.

Muito a propósito, esta saga local recorda-me a negação, culta e polémica, de uma notável equipa de arquitectos - Lacaton e Vassal - perante a hipótese de renovação "recusada" de um outro lugar urbano, de rara e delicada excelência, como este. O seu projecto, que Iñaki Abalos mais tarde sublinharia com o título expressivo de um artigo, "I would prefer not to" (eu preferiria não fazer), numa publicação científica da ETH de Lausanne (Natural Metaphor - Architectural Papers III), contempla uma situação em tudo comparável a esta do Alboi, quando os autores limitaram deliberadamente a expressão da sua intervenção requalificadora, da Praça de Léon Aucoc, em Bordéus, no passado ano de 1996, experimentando imediatamente o gáudio dos residentes e fazendo disso uma lição exemplar de gestão e cidadania, e de rara inteligência técnica e disciplinar, suportada na determinada e cúmplice decisão governativa.



Aveiro, 27 de Outubro de 2010.

João Cardielos


publicado por amigosdavenida às 08:36 | link do post | comentar | favorito

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