Terça-feira, 25 de Janeiro de 2011

[publicado no Diário de Aveiro 24 JAN]

 

'Por diversos motivos, desloco-me por vezes a Aveiro, vindo do Porto.

Há tempos, li uma reportagem no jornal Público sobre o bairro do Alboi. Julgava não conhecer o local mas pela descrição feita depreendi que já tinha andado por lá perto, em deambulações a pé, meu modo preferido de me deslocar quando possível.

Falava-se da revolta dos moradores desse local perante um projeto de «requalificação». Eis uma palavra que me suscita as maiores reticências, de tal modo tem sido utilizada, desde há 15 anos sobretudo, para justificar por vezes intervenções desnecessárias e caras, abates indiscriminados de árvores, destruição de elementos urbanos valiosos e sua substituição por outros duvidosos, descaraterização de traços identitários da paisagem urbana.

Teriam os moradores razão na sua revolta?

Se fosse algo do género, certamente eu estaria de acordo com eles.

O enquadramento da intervenção que motivava o seu protesto num projeto designado de «sustentabilidade» foi outra coisa que me alertou.

A verdadeira «sustentabilidade» (ambiental, ecológica, social, económica, financeira) não só merece todo o apoio como é uma necessidade imperiosa.

Mas tal como com a palavra «requalificação», apercebi-me desde há uns anos que o termo é hoje utilizado com frequência para designar o exato oposto. É a famosa «novilíngua» (Georges Orwell) em que os termos são aplicados de modo a, passando por verdadeiros, mentir e falsear, neste caso fazendo aparentemente passar por obra meritória o que seria a sua exata negação.

Fiquei curioso. Quando fosse a Aveiro, iria querer saber onde é o Alboi e tentar perceber as razões dos moradores.

Deambulava vindo da Universidade e ladeava um quarteirão por onde já várias vezes antes tinha passado, quando, quase inadvertidamente, reparei que uma janela ostentava um humilde cartaz impresso a preto onde sobressaía a palavra «Alboi».

Entrei no bairro (que afinal conhecia mas apenas na periferia) e logo a seguir no jardim interior, ponto central e o mais afetado pela intervenção prevista e a que se opõem muitos dos moradores.

Em Aveiro, como na generalidade do país, há alguns bairros de construção «moderna» confrangedora onde uma real requalificação faria algum ou mesmo muito sentido. Mas entrar naquele bairro, modesto, gracioso mesmo sem possuir nenhuma obra «grandiosa», naquele jardim simples, sem pretensões, mas correto, agradável, acolhedor, é entrar numa dimensão de paz, de tranquilidade, de silêncio!, de oásis (apesar de Aveiro ser uma cidade de dimensão e trepidação suportáveis), que transporta o morador ou o visitante ocasional para outra dimensão.

De imediato era percetível que um espaço daqueles, a manter e a preservar com eventuais melhoramentos de pormenor muito cuidadosos, deveria no mais ser intocável. Numa era de degradação contínua da qualidade de vida em meio urbano, aquela joia ali quedada quase por milagre deveria merecer o espanto e o respeito de quem quer que sinta verdadeiramente o que é a alma de uma cidade ou de um quarteirão urbano.

Interroguei-me: como é que autarcas, técnicos, projetistas, urbanistas, podem conceber uma intervenção como a prevista sem «temor e tremor», sem um pouco ao menos de vergonha? Por mais que haja quem não queira ver que existem tendências de época (como em todas as épocas, hoje um grau exponencialmente acima talvez) que representam uma ruína do pensamento, é preciso que haja quem afirme e aponte essa ruína (que amigos sugeriram ser também da «alma») para que os seus autores não possam dentro de duas décadas (quando se oficializam os arrependimentos...) dizer «que não sabiam». Felizmente, embora de maneira mais singela, é isso que exprime a revolta dos moradores do Alboi que colaram cartazes nas janelas das suas casas liliputianas mas singelamente atraentes a dizer, embora por outras palavras, que se recusam a ser triturados pela pretensa «modernidade», mesmo «sustentável».

Quem estiver ainda a tempo e puder impedir um disparate desses, que não fique de braços cruzados'.

 

José Carlos Marques

licenciado em filosofia, ex-professor, escritor,

ex-tradutor numa instituição internacional europeia

 

 


tags: ,

publicado por amigosdavenida às 09:00 | link do post | comentar | favorito

SOBRE CIDADES, CIDADANIA, O FUTURO E AVEIRO. UM BLOGUE EDITADO POR JOSÉ CARLOS MOTA
GRUPO FB 'PENSAR O FUTURO - AVEIRO 2020'
2013-01-04_2204.png
ADESÃO À MAILING-LIST 'PENSAR O FUTURO DE AVEIRO'

GRUPO 'PENSAR O FUTURO DE AVEIRO'
AUTOR
E-mail Gmail
Facebook1
Facebook2
Twitter
Linkedin
Google +
QUORA
JCM Works
Slideshare1
Slideshare2
Academia.Edu
links
Maio 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30
31


mais sobre mim
arquivos

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008